Quem quer beber no Cálice de Ares?

Começou a copa do mundo. Bilhões de pessoas param seus afazeres ao redor do planeta para contemplar os jogos. Um momento em família, com pipoca, petiscos (aqui no Sul chimarrão, chocolate quente, doces de pelotas...), bandeiras, cornetas, camisetas, enfim, a típica festa brasileira. Um momento de paz para apreciar um dos maiores talentos do nosso país. Será?
Creio que a cena familiar acima é verdadeira e agradável, mas era muito mais autêntica quando o Brasil tinha nos pés o famoso "futebol-arte", que, convenhamos, deixou de existir há algum tempo, mesmo que os fãs mais fervorosos me falem de Ronaldinho Gaúcho e Robinho, vão concordar que não temos mais um time brilhante. A cada temporada um ou outro talento aparece, mas já não há um grupo coeso e com uma identidade que nos represente ou nos sirva de exemplo de garra, vibração, ou nos traga emoção. Hoje o futebol deixou de ser esporte para se tornar comércio. E os jogos, batalhas de mercenários. Mas será que a essência das competições algum dia foi diferente?


Desde tempos muito remotos, guerras entre nações eram decididas através de duelos para poupar vidas. O duelo entre Davi e Golias é um exemplo típico dessa prática. Mas, houve os casos em que mesmo após o duelo, o vencedor massacrava os vencidos para garantir uma vitória absoluta. Um sobrevivente anônimo que restasse, era suficiente para iniciar um ciclo de vingança. Em certas ocasiões, um descendente de um herói morto no duelo, jurava vingança no mesmo instante, e marcava uma data para o próximo combate, onde "lavaria sua honra com o sangue do inimigo".
O sangue. Aliado inseparável da guerra, assim como a morte. Os gregos começaram a praticar de forma organizada "duelos" onde o objetivo não era mais subjugar um inimigo em combate por conquista de território. A conquista agora era para a glória própria. Era para o ego. Era pra dizer que "eu valho mais que meu concorrente". Não demoraria até que ideias menores de diversões bizarras e mais regionalizadas se tornassem febre indo de carona nesse conceito tão bem desenhado. O misticismo de alguns somado a esta estrutura, trouxe à cena o ator que faltava, a participação das divindades. Criminosos eram postos em combate e o que morria era considerado julgado e condenado pelos deuses.
Ares (Grécia) - Marte (Roma) - O deus da guerra
Chegando em Roma, as competições tiveram seu ápice em todos os sentidos. Ares, o deus grego da guerra, que na Grécia era mais temido e respeitado do que adorado, em Roma era venerado com veemência. Considerado o pai de Rômulo e Remo, os fundadores de Roma, era praticamente a fonte da vida romana. Adorado como Marte, suas cores e elementos estavam em tudo. Entre os gregos existia o Areópago, um auditório que servia aos interesses judiciais da aristocracia ateniense, e que significa literalmente Colina de Ares, pois seus membros, juízes em tempos de paz, eram os altos oficiais militares em tempo de guerra, ou seja, os que buscavam favor de Ares. E tanto na guerra como na paz, tinham a função de decidir entre a vida e a morte. Os principais casos decididos no Areópago eram de homicídio premeditado, incêndio e envenenamento. Em Roma, Marte aparecia de modo mais aberto e um pouco mais distante da justiça. O principal local de adoração a ele era o Circo de Roma, onde muito sangue era derramado na arena.
Coliseu de Roma
Quando os romanos saíam em combate, prometiam muito sangue à Marte e cachorros eram sacrificados para Ares pelos espartanos antes das batalhas. Nos circos romanos, se ouviam cânticos entoados a Marte quando o sangue começava a jorrar. Em alguns espetáculos o sangue era tanto que começava a escorrer para fora das arenas.
O maior espetáculo que havia em roma eram as lutas de gladiadores, onde a morte acontecia por puro capricho. E na maioria das vezes era decidida por um polegar do imperador para cima ou para baixo.
Gladiadores
Roma construiu arenas por todo o império, e nos locais onde o imperador não estava, eram os sacerdotes que faziam as honras da casa. Porque eles e não os políticos? Por que o imperador era considerado um deus e os sacerdotes eram seus representantes. E por o circo possuir uma prerrogativa mística-religiosa. Os sacerdotes apenas estavam cumprindo seu papel na sociedade.
Hoje, temos presenciado cada vez mais nossos estádios de futebol se transformarem em arenas, onde não raro, é derramado sangue e tem lugar confrontos terríveis entre polícia e torcedores. E da mesma maneira que Roma suplantava revoltas da plebe de desempregados e pobretões com a política de pão e circo, hoje a Copa da Fifa tira nossa concentração dos problemas graves do nosso cotidiano e nos mantém alienados no brilho do entretenimento barato das partidas de futebol.
Torcedores em confronto com a polícia.
Jogador ferido em jogo.
O país sede da copa está entre os mais pobres do mundo. E lá a Associação Nacional de Curandeiros fez um sacrifício de um boi no principal estádio da copa para "apaziguar os espíritos". De um jeito ou de outro, há derramamento de sangue. Interessante a FIFA permitir isso enquanto "desencorajou" práticas como as orações feitas pela seleção do Tetra em 1994.
Ritual no Soccer City para "abençoar" a Copa
As organizações da mídia fazem questão de dizer que o evento gerou prosperidade lá. Mas por quanto tempo? Em 2014 a folia marciana é aqui no Brasil, e já estão investindo milhões nas nossas arenas.
Arena Tricolor - Novo complexo esportivo do Grêmio FBPA
Enquanto o povo passa fome, o desemprego aumenta, a criminalidade prolifera, os presídios permanecem lotados, os abortos se tornam descontrolados, a mídia traz a cobertura hipnótica do novo circo de Roma para dentro das nossas casas. Jogadores de futebol que ganham milhões por mês são idolatrados como heróis, enquanto o povo considera corruptos e salafrários os políticos que ganham alguns milhares. Ah, mas o jogador não roubou do povo! Não mesmo? Quem é que paga os ingressos que viram salários? Ah, mas existem jogadores que investem em ação social, existem jogadores cristãos! Ok, os políticos também, e a classe política não deixa de ser criticada por causa dos honestos. Já os boleiros são ungidos de Ares, não podemos tocá-los...
Precisamos parar com a hipocrisia e refletir sobre o legado que estamos deixando. As eleições se aproximam e ninguém está cuidando e fiscalizando os políticos porque está de olho na copa. Coincidência ou farinha do mesmo saco? Quantos cartolas e dirigentes de clubes são políticos? Seria gratuita essa união do circo com o poder? Quando entramos de roldão na emoção verde e amarela, o futuro dos nossos descendentes é posto em perigo.
Já pararam pra pensar no simples significado da palavra COPA? Um cálice, uma taça, um vaso. Que originalmente era cheia de sangue nos ritos marciais (de Marte). Você tem sede de sangue? Então está pronto para beber e compartilhar a Taça do Mundo, o Cálice de Ares.
Troféu da FIFA
Não sou contra o esporte e vou ficar feliz se o Brasil ganhar o Hexa. Porém, não vou deixar o brilho fugaz do evento me cegar para as coisas sérias e realmente importantes.

Pra frente Brasil...

Juliano G. Leal - MRM/MARP

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